Mário-Henrique Leiria - Tradutor

O Pião Digital


Além de escritor, o surrealista Mário-Henrique Leiria, autor dos Contos do Gin, tónico revigorante para qualquer um que tenha engolido muito óleo de fígado de bacalhau literário, a quem a boca ainda lhe ande pastosa dos indigestos palimpsestos, traduziu também e tão-só três, pelo menos que eu saiba, de entre as vinte melhores obras de ficção científica (FC) do século passado: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; e O Declínio de Marte, de Alex Tolstoi. O primeiro para a Livros do Brasil, o segundo para a Unibolso/Livros do Brasil e o terceiro para a Ulisseia. Todos de capa mole não plasticizada, embora depois tenham vindo a receber melhorias e estampa em diferentes chancelas. Três "livrinhos" de escritores razoavelmente consagrados nos meandros literários, considerados maiores e mais sérios, mas com notáveis incursões e consequentes recaídas na FC, género apelidado (erradamente) por muitos bárbaros (e gentios) como subdivisão do fantástico e do cordel. Embora, por exemplo, Ray Bradbury conte com títulos como As Crónicas Marcianas, livro citado por Daniel Filipe, no seu poema A Invenção do Amor, tão nomeado, citado, lido e dito pela geração das flores portuguesa, além de diversos outros que serviram de base a filmes famosos, de realizadores de culto, como é o caso de François Truffaut, que realizou Fahrenheit 451, e o tornou um ícone da sétima arte e um grito de revolta contra o cinzentismo nuclear dos poderes ditatoriais, como igualmente o terá sido 1984, de Orwell, apenas para lembrar outra das obras maiores daquele que ainda é considerado um género bastardo da literatura universal.
Traduções estas que não admiram ninguém, porquanto em Portugal na época, como ainda agora, continuam somente a haver dois caminhos possíveis para quem se queira dedicar à literatura, à criação literária, independentemente dessa balofidade académica onde se empanturram milhares de literatos todos os anos, que é o ensino superior e universitário, mas de ínfima importância se comparados aos caminhos passíveis de gerar alguma segurança discursiva e ensaiar diversas "experiências modelares aproveitáveis" como o são, indubitavelmente, o jornalismo e a tradução. José Cardoso Pires, fê-lo em, por exemplo, O Pão da Mentira, de Horace McCoy, António Ramos Rosa, em A Confidência Imperfeita, de André Gide, Luiza Neto Jorge, em o Outono em Pequim, de Boris Vian, ou Morte a Crédito, de Céline, Cabral do Nascimento, em Estranha Solidão, de Philippe Sollers, ou Um Homem no Jardim Zoológico, de David Garnett, João Gaspar Simões, em Calafrio, de Henry James, José Rodrigues Miguéis, em Coração Solitário Caçador, de Carson McCullers, Adolfo Casais Monteiro, nos policiais Três Igual a Um, de Stanislas Andre Steeman, ou Rito Mortal, de Anita Blackmon, Egito Gonçalves, em Inês Vai Morrer, de Renata Vignó, José Saramago, em O Denunciante, de Liam O’Flaherty, etc., etc., e isto apenas para citar algumas das obras que foram fundamentais na formação literária de muitos escritores da nossa portugalidade recente, e sem as quais, obras e autores, nós nunca teríamos conseguido romper com o bacoconismo provinciano da nossa ortodoxa mediocridade intelectual.
Portanto, se se deve a Mário-Henrique Leiria, que tendo feito como fizeram muitos outros intelectuais do seu tempo, a tradução destes três títulos, o que ninguém pode refutar, é que no mínimo de dois deles, o Admirável Mundo Novo e o Fahreneit 451, a temperatura a que um livro se inflama e consome, foram os responsáveis pela entrada no mundo das letras de grande porcentagem dos que hoje andam nessas lides, provavelmente desacreditando, ou intentando desacreditar, os conteúdos políticos dos modelos de sociedade que os suportaram.
Fahrenheit 451 é o livro dos homens que resistem ao esquecimento, os que se rebelam contra o fogo do tempo e guardam em memória cada obra e autor da sua simpatia, para que lho não queimem, e assim cada livro seja um ser vivo que caminha pelos carris ou auto-estradas do futuro, acumulando sempre mais conhecimento, para quando um dia esse seja útil e de necessária aplicação, ou eles, os livros, estejam decantados em nós, exprimindo-se pelas nossas mãos e pelas nossas bocas, como sucede desde os tempos das cavernas, e veio a ser oficializado inicialmente em França, pela tomada de franqueza de Pedro Ramus, que os transformou num objecto didáctico por excelência, integrando-o no ensino.
Porque «sabemos perfeitamente o que fizemos durante séculos e, se o não esquecemos, se guardamos consciência disso, temos uma oportunidade de renunciar um dia a construir essas fogueiras para nos lançarmos nelas. A cada geração, reunimos novos homens que se recordam. [...] Se não esqueçam disto: somos homens sem importância, somos insignificantes. Talvez que, um dia, o fardo que transportamos possa ser útil a alguém. Nas semanas, nos meses, nos anos que virão, iremos encontrar muita gente abandonada, solitária. E, se nos perguntarem o que fazemos, podemos responder: "Nós lembramo-nos." É assim que, lentamente, acabaremos por ganhar a partida. E, um dia, lembrar-nos-emos tão bem que construiremos a maior pá mecânica da História, cavaremos o maior túmulo de todos os tempos e enterraremos a guerra. Vamos, agora a caminho; e, para começar, vamos construir uma fábrica de espelhos e não pôr em circulação senão espelhos, durante um ano, e observarmo-nos longamente neles», p. 194, para que jamais se julguem livros pelas capas, uma vez que "é isto o que o homem tem de maravilhoso. Ele nunca perde a coragem, nunca se desilude ao ponto de tudo abandonar, pois conhecem muito bem a importância e a grandeza da sua tarefa", que mais não somos que livros abertos e apenas temos um fim, que é o de preservar os conhecimentos que nos serão preciosos amanhã.
E quem diz espelhos, diz blogs, por exemplo. Páginas pessoais que nos reflectem, reflectindo outros mais. Pequenas fogueiras que nos queimam a solidão e a transformam numa labareda universal, um hífen que se edifica travessão para o diálogo global. Enfim, literatura sem papel a fazer da memória, aquele fio da História, que já se não chama cordel. Nem fita...
Nem guita!

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