Recortes do imaginário para uma paisagem real

A Morte do Professor
Hugo Santos


Estas coisas são exactamente assim: há dois "judites" (Carranca, ex-seminarista que fuma cachimbo, e Pereira Dias, que cursara Direito/Letras) e um crime. Hediondo. Vil. Insólito. E inumano. Que curiosamente passa (também) a dois (lá prò fim). Por isso, tem forçosamente que haver um criminoso – pelo menos. Vai daí, os PJ's foram-se a ele, a procurá-lo, com as ajudas de um sargento, um cabo e quatro praças da GNR. Se o encontraram ou não, eis os outros quinhentos da questão... Que por agora, o que deveras importa, é o modo de agir, o raciocínio, as démarches, as sortes, no cumprimento do dever. E eis senão quando, o tempo (que continua sábio) actua, e duas salvas a Onan e quatro achegas depois, o caso se resolve, com o sublinhado a recair sobre uns elucidativos cadernos de capa preta.
Estes cadernos, diários de bordo ou moleskines, são o patamar de passagem para outro nível de leitura. Lá iremos! Por enquanto, é à volta deles que gira o mistério da morte de Daniel, o professor, e mais não são do que a "reposição em cena" de algumas das peculiares, para bastantes e inúmeros simplesmente manias, para outros, embora não tantos, faróis de auxílio na navegação literária, matérias-primas dos escritores, que é o de anotarem tudo o que vêm, ouvem, sentem e vivem e, ao fazê-lo, recorrem àquilo a que outros já recorreram (com êxito), como por exemplo o terá feito um dos mais honestos e criativos homens das letras do nosso país: Raul Brandão. Dos quais, um sempre o acompanhava, para nele, quer estivesse em tertúlia de livraria ou café, quer em família ou reunião política, ir esboçando as suas peças de teatro, os romances, os apontamentos paisagísticos, memórias, críticas, pensamentos, nas mais díspares circunstâncias e independentemente do ambiente, natural ou social, em que se encontrava. Autor que, aliás, faz parte do discurso e do universo intertextual de Hugo Santos, com quem terá aprendido a importância das coisas simples, do canto das aves v. g., atribuindo a parte de leão na repartição dele, discurso, digo, com outros não menos essenciais à esfera da nossa portugalidade, como Eugénio de Andrade, Miguel Torga, Ramos Rosa, Vergílio Ferreira ou Aragon.
Detentor de um estilo insinuante, circular, de onda provocada por pedrinha na água, jogo de paciência, como o das pedras da quadratura do círculo, em que se vence sobretudo pelo cansaço que se incute ao adversário, repetitivo na musicalidade, concêntrico na observância semântica, muito próximo da "proustiana recherche", que rumina os espaços-quando e os liga pela baba-teia dos enredos, das emoções (re)visitadas, este escritor de Campo Maior, alentejano de muitos costados, consegue fazer ferver a água fora dos testos e contextos, transbordar deles, ultrapassar a sua própria significação, contrapondo ao dejá vu do intrincado da trama, dramática sem dúvida, numa narrativa de alcance superior, à propriedade do simbólico, se enveredarmos por leituras menos literais, embora que mais abrangentes e extensivas, pragmáticas, essenciais e conclusivas do ponto de vista da literatura nacional. De resto, e por sinal, muito pouco regionalista, além da contabilização de um ou outro vocábulo, algumas "vozes", a vila, as personagens que se encerram, e circunscrevem, no provincianismo envergonhado dentro do provincianismo exposto, ou pretendido, apenas denunciado pelo contraste da universalidade que a ele aporta nas figuras "viajadas e vividas" dos dois polícias e de Vanda, ou desenlace serôdio de uma paixão ultramarina, uma regressada da diáspora colonialista, retornada, a carpir os seus encontros e desencontros, a vingarem-se deles e da desdita que os reuniu num lugar tão ermo, afastado da cosmopolita civilização.
E tudo isso, numa simplicidade surpreendente, num só golpe de génio, ou passe de mágica: transformando um policial num romance de amor, onde a morte do professor deixa de ser apenas um crime, para passar a ser o final concernente a quem cumpriu a sua (missão na) vida, e se tornou eterno na dupla gravidez de Mercês, a shakespeariana Julieta da questão, ao deixar-lhe simultaneamente um filho no ventre e os cadernos de capa preta, cuja semente germinaria de há muito em suas mentalidades. Eis aí o grande paralelismo, para uma elipse fadada a funcionar...

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